
Num mundo até então aparentemente conhecido, o folhear das páginas e as breves olhadelas em trechos interessantes revelavam-se com certo estupor: combinação de palavras, cujo encadeamento era o descortinamento de um real fantástico.
Lispector, Pessoa, Sartre, Tolstoi, Lygia: nomes desconhecidos ou até mesmo distantes da possibilidade de um encontro inesperado que se desenvolve num cantinho isolado de um setor de literatura e filosofia de uma biblioteca pública, à qual nos dirigiamos tão somente para apressadas e afobadas transcrições de conceitos e definições dos livros didáticos.
Números complexos, eletricidade, genética, funções inorgânicas, movimentos da Terra se confundiam e nos confundiam, porém entre as estantes pouco exploradas, escondidas e protegidas por uma mocinha que lia compulsivamente os capítulos finais de Brida, lá estavam eles...
A mãe, Raskolnikov, Karenina, Basílio, Marcel, os Buendía, Otelo, Chinasky, talvez refletindo sobre o abandono, ou seria um sequestro? É bem verdade que Bentinho, Brás, Macabéa, Aurélia até faziam um passeio rápido, mas pouco prazeroso, já que as narrativas nas quais figuravam eram mais acompanhadas por obrigação e sempre exigiam deles, principalmente de Bentinho e Capitu que a complexidade de suas vidas fossem sumarizadas em interpretações asfixiantes em a, b, c, d e f.
A solidão de uma estante empoeirada ou o trágico destino das páginas marcadas e riscadas em busca de resposta tão objetivas quanto a enumeração das leis de Mendel.
Não bastava descobri-los, folheá-los, devorá-los no cantinho protegido pela moça que, até então, desconhecia aquelas vis existências ( ou até mesmo as ignorava, enquanto folheava seu caderno de resumos das obras literárias do vestibular que faria para Biblioteconomia), mas portá-los à casa tão distante da biblioteca significava desprender mais alguns centavos para o transporte e a reclamação de uma mãe que não via Matemática e Física no grito desesperado de Sylvia Plath ou na narrativa inebriante e desafiadora de Guimarães Rosa.
É..., hunf. Ela nem imaginava quão fáceis eram os teoremas e a eletrostática diante das linhas afiadas, estrofes cortantes de tais 'desconhecidos'.
Mas, no ímpeto de convencê-la, as tentativas vãs de demonstrar a "metafísica" nos poemas de Caeiro esbarravam na "tragédia da impossibilidade" (no mundo de plurisignificados, não tenho receio de ousar encontrar neste 'mimo' de Florbela um meio para expressar algo aparentemente distante da não-realização de uma relação afetiva): visitar, discutir e conhecer outros órfãos literatos naquele cantinho guardado pela moça (e não era a moça do balcão bpn).
A moça! A moça? Ah, a moça que notava a ausência da menininha- que a fazia levantar-se para pegar os volumes das estantes quase inalcansáveis para o simulacro de leitora de um 1,50m - naquele dia abandonava o guia semanal da tv e começava a folhear uma pequena brochura de contos, encontrada numa caixa de livros que iriam ser "descartados" (hum, que eufemismo para assassinato!), pois os coordenadores da biblioteca julgavam que AQUELA biblioteca récem-inaugurada não poderia enfeiar-se com livros sujos e de folhas amareladas. E para minha secreta felicidade, quase como a felicidade clandestina de lispector, o livrinho de contos não era uma exigência para o vestibular da moça, que
provavelmente, um pouco menos neurótica, poderia ver um pouco além do moinhos de vento.
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